Desconhecimento sobre as vítimas atrapalha construção de políticas públicas de combate à violência. Estudo feito no Paraná aponta que dados sobre escolaridade, renda familiar e dependência financeira são ignorados na maioria dos casos.
A falta de informações sobre vítimas de feminicídio tornou as mulheres “invisíveis” em processos judiciais no Paraná. A omissão de dados como profissão, renda e escolaridade atrapalha a elaboração de políticas públicas para mulheres e também podem ter impactado na pena de agressores.
Essas foram algumas das conclusões de um estudo feito pelo Centro de Pesquisa Jurídica e Social (CPJUS), do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Positivo (UP). Foram analisados 147 processos – com sentença ou pronúncia – de feminicídios no Paraná entre 2017 e 2020.
Confira números que evidenciam a falta de informações nos processos:
- Renda familiar: em 95% dos casos a renda familiar das vítimas não foi mencionada; nos 5% restantes, ela era de até dois salários mínimos.
- Escolaridade: 73% dos processos analisados ignoraram a escolaridade das mulheres. Entretanto, quando constava essa informação: 8% possuíam ensino fundamental incompleto; 7% ensino médio completo; 6% ensino fundamental completo; 3% ensino médio incompleto; 1% ensino superior incompleto, 1% eram analfabetas.
- Dependência financeira: 53% dos processos não mencionaram se a mulher era financeiramente dependente do marido.
- Profissão: 48% dos casos não possuem essa informação. Nos demais: 13% delas foram classificadas como “do lar”; 6% como diaristas; 5% como desempregadas; 4% como estudantes; 3% como vendedoras; 3% como agricultoras e 18% como tendo outras profissões.
- Cor da vítima: 16% não apresentaram essa informação no boletim de ocorrência; 47% eram brancas; 32% pardas; 4% pretas e 1% amarelas.
A pesquisadora conta que se deparou com processos em que a tese da “legítima defesa da honra” é colocada. O uso de testes foi proibido neste mês por unanimidade pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por contrariar princípios constitucionais.
“A gente pegou um caso em que um operador da Justiça faz exatamente essa pergunta: ‘mas essa era uma mulher direita? Ela tem testemunha de que cuidava dos filhos? Que se comportava?’ Uma forte moralização daquela mulher que foi assassinada, pois e se não for mulher direita? E daí? Mulheres ‘não direitas’ podem ser assassinadas? Mulheres que não cuidam da casa podem ser assassinadas?”, questiona a pesquisadora.
A juíza Zilda Romero, do Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher de Londrina, no norte do estado, aponta que um dossiê do Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR) evidencia que a maioria dos casos de violência contra a mulher são atendidos por homens.
“Os inquéritos policiais, na maioria das vezes, foram formulados por policiais homens. Só em 30% havia figura da policial feminina”, explica. Segundo ela, o padrão se repete ao passar pelo Ministério Público do Paraná (MP-PR) e pela Justiça.
De acordo com a pesquisadora, os homens que atuam nesses casos, de advogados a juízes, precisam “ter uma postura de compreensão do tamanho de um crime de feminicídio e de como as questões de gênero impactam nesses processos”.
Impacto da falta de dados
Conforme o estudo, é possível concluir que os feminicídas no Paraná são responsabilizados e colocados para cumprir a pena. Porém, na avaliação de Olívia, isso não tem reflexo imediato na sociedade e na redução dos crimes.
“Todo ano a gente tem aumento o número de feminicídios. Então, essa ação é insuficiente porque quando morre uma mulher por uma questão de feminicídio, ou seja, houve uma questão de gênero na morte, é um crime que atinge toda a sociedade. A responsabilização por meio da pena é tratada em ordem individual, mas em ordem de sociedade, tinham que ter outros tipos de ações”, diz Olívia.
No ano passado, foram registrados 217 inquéritos de tentativas e de feminicidios no Paraná, conforme o MP-PR. Em 2019, o número foi de 209 casos. O Mapa da Violência de Gênero indica que o Paraná é o estado com a maior número de mulheres assassinadas em relação à população.
A pesquisadora explica que uma vítima de feminicídio passou por uma série de violências até que fosse morta. E, nem sempre, uma medida protetiva contra o agressor é suficiente. Segundo ela, em 30% dos casos pesquisados as vítimas tinham conseguido a medida.
Olívia Pessoa aponta que é preciso uma rede de suporte e proteção para que essas mulheres consigam superar questões como a dependência econômica e emocional. Daí, segundo ela, a importância de se conhecer as vítimas para a criação de políticas públicas que funcionem.
“Falam: ‘por que essa mulher não se separou?’ A gente tem essa hipótese que existe uma vulnerabilidade econômica, porque essa mulher tem, em média, dois filhos, geralmente não tem condições de sair daquele lar naquele momento. E tem as vezes uma dependência muito grande, maior que a financeira, que é a emocional daquela relação”, afirma a pesquisadora.https://tpc.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html
Casos de repercussão e banalização da violência
Há casos de feminicídio que ganham repercussão na mídia e na sociedade, como a morte da advogada Tatiane Spitzner, em Guarapuava, na região central do estado, em 22 de julho de 2018. A data, inclusive, tornou-se por lei o Dia de Combate ao Feminicídio no Paraná.
De acordo com a pesquisadora, é importante que os casos ganhem visibilidade para que o assunto provoque as instituições a agirem. Por outro lado, ela considera lamentável que sejam, em geral, histórias de mulheres brancas e bem inseridas socialmente.
Ela comenta que essa banalização de alguns corpos é um traço da herança escravocrata. “A sociedade de um modo geral, inclusive a mídia, se mobiliza em cima desses casos [de mulheres brancas, por exemplo] porque é o que dói, é onde a gente olha e fala: ‘poderia ser eu'”, avalia.
Perfil dos agressores
O levantamento apontou que 97% das vítimas possuíam algum vínculo com o acusado, sendo:
- 50% companheiros (casados, em união estável ou namorados);
- 39% ex-companheiros;
- 5% outro tipo de relacionamento;
- 3% parentesco ascendente ou descendente (pai ou filho);
- 3% não tiveram o vínculo informado.
A informação sobre a escolaridade do acusado esteve ausente em 45% dos processos analisados pelo CPJUS. 78% dos acusados não era reincidente, apenas 22% reincidiram.
Nos registros das ocorrências de 50% dos casos constam a informação de que o acusado era branco; 32% foram declarados como pardos, 10% não tinham a informação e 8% eram pretos.
O que é preciso mudar?
Segundo a pesquisadora, é necessário discutir gênero desde sempre, inclusive nas escolas. Para ela, a violência que ocorre contra as mulheres deve ser pauta constante na sociedade, já que os índices do crime são cada vez mais elevados.
Para a pesquisadora, é necessário mudar ações desde os primeiros sinais de violência – na tentativa de se evitar que mais mulheres sejam vítimas de feminicídio. Olívia afirma que, em geral, as vítimas de violência preferem não denunciar a agressão à polícia por vergonha e receio de como serão vistas.
“Então isso ainda é acolhido no âmbito social como um problema da esfera privada, que ‘em briga de marido e mulher ninguém mete a colher’. E aí quando isso vem para a esfera pública e a mulher fala: ‘eu estou apanhando do meu companheiro’, isso precisa de ela ter um suporte emocional muito grande, que na maioria das vezes a gente identifica que elas não possuem”.
A pesquisadora diz que também é preciso se pensar na ressocialização dos feminicídas, a fim de que o crime não se repita.
“Há homens que tem vários boletins de ocorrência de agressão a companheiras anteriores. Então, quer dizer que o tratamento penal unicamente para ele está sendo insuficiente, ele precisa ser tratado também em outra esfera”.
Formulário de informações
Olívia Pessoa também aponta alternativas que poderiam ajudar nesses processos de feminicídio, como mudanças na maneira de cadastrar um crime como esse no Processo Judicial Digital (Projudi).
“Quando vai cadastrar um crime de feminicída, teria que colocar todas as informações, como renda da vítima, cor, onde que ela foi assassinada, nível de escolaridade, etc. Tudo isso tinha que estar na página 1 do processo”, afirma.
Nesse sentido, a juíza Zilda Romero explica que o TJ-PR está trabalhando na implantação de um formulário de avaliação de risco para as vítimas de violência, criado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Profissionais estão sendo capacitados para auxiliar no preenchimento.
Como denunciar?
De acordo com a Polícia Civil , em caso de flagrante ou que a situação de violência esteja ocorrendo naquele momento, telefone para o número 190. Para denunciar anonimamente a violência, ligue para 181.
A Polícia Civil mantém delegacias especializadas em todo o Paraná, mas todas as unidades estão aptas a atender vítimas de casos de violência.
- Sem ferimentos graves: procure a Delegacia da Mulher se existir essa unidade em seu município ou a delegacia de Polícia Civil, para registrar o B.O. Na delegacia, a mulher receberá a guia para o exame de corpo de delito. Nesse atendimento, se for o caso, a mulher receberá medicamentos contra doenças sexualmente transmissíveis.
- Com ferimentos graves: quando houver ferimentos graves, com necessidade de pronto atendimento, a unidade de saúde ou hospital deverá fazer o encaminhamento ou orientar a paciente para que procure a delegacia. Na maioria dos casos com internamento, o próprio hospital confirma a violência e avisa a polícia.
Ainda segundo o estudo, as armas mais utilizadas pelos agressores foram instrumentos perfurantes, que aparecem em 51% dos casos, armas de fogo (17%), material inflamável (4%), tijolo (2%) e outros objetos (12%). Em 11% dos casos não houve utilização de armas.
FONTE: G1 Paraná.