Pittet é famoso mundialmente como criador e na origem da democratização do uso do gel hidroalcoólico o álcool em gel, contra infecções nos hospitais
A má gestão no Brasil da crise de covid-19 provoca mortes em excesso em praticamente todas as faixas etárias, ampliando a tragédia humanitária no país. Já em nações com melhor controle da situação, o excesso de óbitos ocorre sobretudo entre os mais idosos e mais vulneráveis.
A constatação é do especialista suíço Didier Pittet, médico-chefe do serviço de prevenção e controle de infecções do Hospital Universitário e da Faculdade de Medicina de Genebra, e presidente da missão independente criada pelo presidente da França, Emmanuel Macron, para avaliar a gestão da crise de covid-19 e antecipação de riscos pandêmicos.
Pittet é famoso mundialmente como criador e na origem da democratização do uso do gel hidroalcoólico [álcool em gel], contra infecções nos hospitais, que agora entrou nos costumes populares com a pandemia.
“Os erros na má gestão dessa crise se pagam em mortes, e o Brasil é vítima da gestão muito ruim de Jair Bolsonaro”, disse Pittet, em entrevista ao Valor, coincidindo com dados que confirmam o país como epicentro global da crise. O site da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostrava no início da tarde de ontem que o Brasil foi responsável por 31% das mortes globais por covid-19 em 24 horas (2.438 óbitos do total de 7.863). Na semana passada, o país liderou as mortes, com 26% do total global.
A pedido de Macron, Pittet prepara com sua equipe um diagnóstico sobre a rapidez, pertinência e proporcionalidade da resposta francesa à crise sanitária, com comparação internacional a fim de tirar as lições e sugestões para o futuro. Um dos indicadores que o médico suíço utiliza é o excesso de mortalidade, definido como a diferença entre a mortalidade observada e a mortalidade esperada, levando em conta a estrutura demográfica de cada país.
“Excesso de mortes teve em todos os países. Mas, quando a gestão da crise não é boa, tem uma repercussão bem além dos mais idosos e mais vulneráveis”, disse Pittet. “Pudemos demonstrar que o excesso de mortalidade, o dado mais confiável para comparar, é encontrado em todas as classes de idades quando a gestão é ruim.”
Ele observou que estudou o Brasil menos que outros países. Mas que os dados intermediários para o relatório, a ser divulgado em abril, apontam excesso de mortalidade a partir da idade adulta no Brasil, EUA, Índia e também, um pouco, no Reino Unido, portanto não concentrada apenas entre os mais idosos.
“É um excesso generalizado, que poderia ter sido evitado. E é preciso falar também dos que não morreram, mas têm enormes complicações com a doença, com efeitos de longo prazo”, afirmou. Para Pittet, “Jair Bolsonaro infelizmente se fez de esperto com a doença e influenciou mau comportamento, assim como Donald Trump nos EUA”.
Ele aponta, entre os países desenvolvidos, os EUA como o que pior administrou a crise sanitária. “Pelos dados que vamos publicar, os EUA nunca conseguiram resolver a primeira onda da pandemia”, disse. Também o Brasil parece estar ainda na primeira onda, “e, além disso, teve dificuldades como em Manaus, com a nova variante com contágio superior a outros locais no mundo”.
Atualmente, conforme Didier Pittet, a Europa está exposta a uma terceira onda da pandemia, ligada à variante britânica, com a característica particular de contagiar mais facilmente e ser mais mortal. Alguns países, como a Suíça, decidiram não relaxar as medidas em meio a mais casos de infecção.
Ele prevê que também a chanceler Angela Merkel, na Alemanha, vai retardar o relaxamento de medidas, apesar de certos protestos. A França colocou 16 regiões em estado de prevenção. Itália e Áustria seguiram algo parecido. “A maior parte dos países na Europa está atrasando a abertura para evitar algo pior numa terceira onda”, disse.
“A vacina impede morrer. Mas é preciso atingirmos uma imunidade suficiente de 80% da população, o que significa que essa proporção da população vacinada terá anticorpos protetores”, acrescentou.
Um retorno mais ou menos à vida normal, com abraços e certas atividades, não virá antes de metade do ano que vem na Europa. “No verão [europeu] que está vindo não será normal, vai ter passaporte ou certificação sanitária que nos permitirá fazer algumas atividades. Mas podem aparecer novas variantes e mais problemas respiratórios no outono, depois no inverno, quando o vírus é mais forte. No verão de 2022 vamos ver se controlamos grande parte da pandemia”.
Sobretudo, disse, “o mundo inteiro precisa reagir, o Brasil precisa reagir, sempre seguindo as orientações, como usar máscara, lavar as mãos, usar álcool em gel e manter distanciamento social”. Conforme Didier Pittet, o vírus não vai desaparecer. “Pouco a pouco vamos ter mais anticorpos e haverá menos propagação rápida do vírus, mas ele vai estar por aqui.”
A lavagem de mão com gel hidroalcoólico tornou-se popular, na pandemia. O que poucos sabem é que se popularizou graças a Pittet. Nos anos 2000, a ausência de higiene nos hospitais provocava mais de 16 milhões de mortes por ano. Foi quando ele criou o gel, bastante simples, com a intenção de não buscar patente, que o teria tornado milionário. “Mas a intenção foi propagá-lo ao máximo”, contou. O “modelo genebrino” foi retomado pela OMS em 2005. Hoje, mais de 35 mil hospitais no mundo seguem esse tipo de higiene. Pittet estima que o gel salva de 5 milhões a 8 milhões de vidas somente nos hospitais. Um comitê faz campanha para ele ganhar o Prêmio Nobel da Paz.
Matéria: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2021/03/23/para-suico-ma-gestao-no-brasil-levou-a-mais-mortes.ghtml?